“O país se transforma na medida em que a Sociedade Civil se organize, e não somente, espera soluções mágicas que caiam milagrosamente de cima para baixo.” Jorge Boran

A morte da vereadora Marielle, no Rio, não é um caso isolado. Artigo brilhante, de Vladimir Safatle na Folha de São Paulo, no dia de 16 março. Quem matou Marielle Franco sabe que tem carta branca do poder para usar a violência sem temer as consequências. Pessoas esclarecidas, que têm um mínimo de bom senso e evitam ideologias fascistas, sabem que não se combate a violência somente atacando os efeitos. Não se cura um câncer dando remédio para eliminar a dor. Estamos em plena Campanha de Fraternidade de 2018 cujo tema é “Fraternidade e Superação da Violência”, tendo como lema “Em Cristo somos todos irmãos” (Mt 23,8). Que tal, como gesto concreto, participar ou organizar um dos muitos protestos que estão acontecendo em diferentes cidades? O país se transforma na medida em que a Sociedade Civil se organize e não, somente, espere soluções mágicas que caiam milagrosamente de cima para baixo.

O tempo das execuções. Nesta quarta-feira (14), o Brasil se deparou com o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL).
Milhares de pessoas foram às ruas, nesta quinta-feira (15), em protesto marcado por indignação e dor
Militante dos direitos humanos, ativista negra e relatora da comissão da Câmara de Vereadores responsável pelo acompanhamento dos desmandos da intervenção militar, Marielle denunciara dias atrás execuções do 41º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em Acari.
Aterrorizando a população civil, o batalhão que mais mata no Rio teria executado dois jovens e jogado os corpos em uma vala. Dias depois, a vereadora foi perseguida por um carro que disparou nove tiros em seu veículo, sem roubar nada. Morreram ela e seu motorista.

Não é difícil imaginar o que deve acontecer depois desse crime: nada, absolutamente nada. Pois ele não é uma exceção. Ele é o modo normal de funcionamento do governo brasileiro.
Há anos, Paulo Magalhães, torturador da ditadura militar que começara a falar abertamente à Comissão Nacional de Verdade sobre práticas de assassinato e tortura impetrada por militares, apareceu morto em seu sítio. Nada aconteceu. Seria possível encher toda essa página de casos semelhantes.

Quem cometeu tal crime sabe que pode contar com a segurança e a impunidade de quem faz parte de um Estado dentro do Estado, de quem tem carta branca para usar a violência sem temer suas consequências.
Quem cometeu tal crime não quis apenas assassinar uma vereadora combativa. Quis também atemorizar qualquer um que queira ocupar seu lugar, agir da mesma forma, impondo com isso um sentimento generalizado de impotência e de paralisia diante da violência de Estado.

Por isso, esse assassinato é o modo normal de funcionamento do sistema brasileiro. É assim que se governa no Brasil: usando impunemente a violência policial, assassinando políticos quando necessário, atirando contra manifestantes, executando cidadãs e cidadãos pobres e vulneráveis.

Marielle expôs como a polícia brasileira age da mesma forma que a máfia italiana, mas com a inteligência suficiente para concentrar sua atuação de milícia mafiosa em favelas “invisíveis” aos olhos de muitos.

As mesmas favelas que alguns colunistas deste jornal foram capazes de comparar a países estrangeiros controlados por outras forças e, por isso, meritórios de intervenção militar digna de situações de guerra.

Ou seja, intervenção que trate setores da população como habitantes de um país inimigo, pessoas a serem fichadas, submetidas a humilhações cotidianas e temor constante de simplesmente desaparecerem sem traço.

Não por acaso, antes de ser assassinada, Marielle vinha de um evento chamado Jovens Negras Movendo as Estruturas. No Brasil, a cada 21 minutos, um jovem afrodescendente é morto, o que mostra claramente como se trata de um setor “matável” da população.

Morte, normalmente, sem consequência legal e cuja comoção social provocada pela violência será provavelmente menor. O que expõe claramente o circuito de violência que impera na sociedade brasileira.

O que vemos agora é apenas a consolidação de uma estrutura de fato. Um país comandado por uma casta de indiciados e criminosos que se apoia em poder militar anabolizado e em poder policial descontrolado que há muito se degradou à condição de setor organizado do banditismo nacional.
Algo que desde a época do regime militar com seus esquadrões da morte e da extorsão, com seus delegados Fleury faz parte da paisagem local.

Por isso, há de se insistir: esse não é um crime isolado, nem será o último. Ele é a verdadeira expressão do que significa “governar” no Brasil. Pois esse país é, antes de qualquer coisa, uma forma de violência.

 

Vladimir Safatle

Filósofo,

é professor livre-docente do

Departamento de Filosofia da USP

(Universidade de São Paulo).