Ser sacerdote é um dos maiores dons de Deus e ato da sua pura, gratuita e infinita misericórdia. Não sou merecedor nem digno desse dom, porém, na sua bondade e misericórdia, meu Pai me chamou para ser seu instrumento no serviço à Igreja e aos irmãos na vocação sacerdotal. Vários são os momentos, na vivência do meu ministério, em que deparo com a minha pequenez, o meu limite, e que me dou conta da grandeza da ação de Deus através de mim, usando até meus defeitos. A Eucaristia é, sem dúvida, o momento auge do ministério sacerdotal, pois, as mãos consagradas, mas humanas – por isso “impuras” – tocam e elevam para os demais irmãos o Corpo e o Sangue de Cristo, nosso maior alimento espiritual. Mesmo não sendo fácil e havendo momentos de dúvida, acredito e vejo que o pão transubstanciado, sem sabor e espessura, é o próprio Cristo. Como deve ser para todos os cristãos, pois Cristo diz: “tomai, comei; isto é o meu corpo. Tomando o cálice, rendeu graças e deu-lho, dizendo: Bebei dele todos; porque este é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado por muitos para remissão de pecados” (Mt 26,26-28). No entanto, incrivelmente parece mais difícil acreditar, ver e tocar Cristo, no irmão com fome e sede, sujo e fedorento, e por vezes, até, malcriado. Contudo, Cristo está presente nele: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes (Mt 25,40).
Quando cheguei a Portugal em 2007 para fazer a teologia e continuar a minha formação religiosa espiritana, o meu formador de então, , Pe. Mário Farias, perguntou-me: “Em Cabo Verde há pessoas em situação de rua?” Prontamente respondi: “Não! Não tem. Tem uns vagabundos e preguiçosos que ficam nas ruas, mas porque querem.” Usando a pedagogia de Paulo Freire, simplesmente me disse: “Então está bem. Vais fazer a pastoral com a comunidade Vida e Paz que cuida desses vagabundos e preguiçosos e depois voltamos a conversar sobre isso.” E assim foi. Com essa experiência mudei minha forma de pensar e daquele momento em diante dei a mim mesmo o desafio de reconhecer a Cristo “vagabundo e preguiçoso”. Guardo uma história que me tocou profundamente e nunca mais esqueci. Havia uma senhora, dos seus 60 anos, que me chamava carinhosamente de meu pretinho. Depois de um tempo, e de ganhar a confiança dela, perguntei por que vivia na rua. Respondeu-me: “Eu morava com minha filha e seu marido. Depois de um tempo o marido dela começou a brigar com ela porque eu estava morando com eles e, para não causar a separação da minha filha, preferi vir para a rua”.
Muitas são as razões que levam os nossos irmãos a viverem nas ruas das nossas cidades. Razões essas que podem ser boas ou não, mas que não tira a dignidade daquele irmão, o ser criado à imagem e semelhança de Deus que ele é. É uma imagem desfigurada, maltratada, desprezada, contudo, é a imagem de Deus, é a imagem de Cristo maltratado, desprezado, marginalizado, que morreu por nós pecadores.
O COVID-19 colocou todo o mundo em alerta num tempo em que nós, os cristãos do oriente, vivemos de forma mais intensa o jejum, a esmola e a oração. Tempo em que somos convidados: “Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15). Tempo que se inicia com: “Lembra-te que és pó, e ao pó hás de voltar” (Gn 3,19)”. Pois é, quando voltarmos ao pó de onde viermos, o que não vai faltar na “prova do ENEM” é: “porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver” (Mt 25,35-36).
Vivemos um tempo nunca visto nem vivido. Um tempo em que até as igrejas se fecharam, mesmo as de cura e libertação, e a palavra de ordem é: FIQUE EM CASA, LAVE AS MÃOS. “Que casa? Lavar as mãos com o quê?” Perguntam os que vivem nas ruas. Diz o dito popular: “a corda rebenta sempre do lado mais fraco”. E arrebentou mesmo. Além de não ter onde ficar resguardado, não ter com que lavar as mãos, não tem o que comer, pois se já era uma batalha conseguir uma refeição por dia em tempos normais, muito mais difícil ficou agora, com quase tudo fechado. Porque, em tempos normais, por mais que nos façam crer que não haja pessoas boas e de Deus, havia sempre quem desse um pouco de comida e água para eles.
Juntamente com uma equipe, tenho saído às ruas para levar uma janta para esses cristos que estão vivendo a paixão. E é de bradar aos céus a situação que temos encontrado. Na terça-feira, 31 de março, saímos com 200 marmitas e aconteceu algo que me arrancou lágrimas dos tirou as lágrimas dos olhos e me fez clamar a Deus. Quando chegamos à Praça da Concórdia, havia muita gente querendo comida, e fomos distribuindo, e quando a marmita e água (que tínhamos bem pouco) acabaram, tinha ainda umas 20 ou mais pessoas na fila. E tivemos de dizer: “Já acabou”. Ver o desfigurar do rosto desses irmãos me cortou o coração. Sabemos que nunca vamos conseguir dar de comer a todos, mas ver aqueles cristos, que já se tinham resignado e conscientizado que dormiriam com fome, e de repente ouvem o grito “olha janta” e aí levantam com os olhos a brilhar e a barriga roncando de felicidade porque iam receber alguma coisa e, depois de pôr-se na fila, esperançosos e alegres, ouvir “acabou”, e dizer “ao menos uma água”, e ouvir de novo: “também acabou”. Dói. Quão difícil foi dizer “acabou” irmão. Foi das piores notícias que já dei. Apesar disso, tem sido momento de verdadeiro encontro com Cristo. Infelizmente, por conta do COVID-19, as minhas mãos consagradas não podem tocar a Cristo presente nesses irmãos, mas tem tocado as marmitas e as águas que alimentam e matam a fome e a sede de Cristo vivo e sofredor. Obrigado, meu Deus, por essa graça!
O papa Francisco na sua reflexão, a partir do texto de Marcos 4,35-41, por ocasião da oração e benção do Santíssimo Urbi et Orbi no dia 27 de março, nos lembrava que em meio a tempestade Jesus vai na nossa barca e nos convida à fé. O Santo Padre pediu para que tenhamos esperança e solidariedade nesse tempo de tempestade.
Quero ressaltar que essa missão de rua, fazemos durante o ano todo, e que apenas intensificamos neste momento pela circunstância em que vivemos. Por isso, gostaria de lembrar que esses cristos, com ou sem a pandemia, estão sempre nas ruas e necessitados, e que apenas amenizamos a situação deles, pois para melhorarmos verdadeiramente esta situação, precisamos de profundas mudanças políticas, religiosas e, até, ideológicas. É preciso uma conversão do pecado pessoal, mas, também do pecado social. Não nos preocupemos com os pobres apenas em momentos de tempestade, ou só para aliviarmos a nossa consciência. Temos de pensar se as escolhas que fazemos, em todos os sentidos e momentos, são a favor ou contra o projeto do Reino apresentado por Jesus Cristo; Se é com base no Evangelho de Cristo ou nos nossos evangelhos que dizemos ser de Cristo.
Finalizando, quero agradecer a todos aqueles que nos tem ajudado, de diversas formas, a sermos sinal de esperança e solidariedade juntos dos cristos da rua. Que Deus abençoe e recompense a cada um. Que tenhamos esperança e confiança de que com Deus venceremos o COVID-19 e que vivamos de forma prática a nossa fé em Deus, que é amor, e que nos convida ao amor. E o amor é ato, é atitude. E lembremo-nos do tema da Campanha da Fraternidade deste ano: “Fraternidade e vida, dom e compromisso”. Cuidemos da vida.
Elson Paulo Correia Lopes, CSSp