Texto de Camilo Vannuchi
Enquanto escrevo este texto, em 7 de agosto de 2020, Dom Pedro Casaldáliga segue internado na Santa Casa de Batatais, no interior de São Paulo. Aos 92 anos, o bispo emérito de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, está na UTI, tratando uma pneumonia associada a um derrame pulmonar. Foram retirados 600 mililitros de líquido do pulmão esquerdo, segundo boletim médico. Dom Pedro convive com o Parkinson há mais de dez anos e vinha acusando dificuldades respiratórias.
Nos últimos dias, mais de um portal antecipou a morte do bispo, um tipo de gafe mais frequente do que deveria ser nos meios de comunicação. O equívoco causou comoção e fez com que muitos olhos se voltassem à condição de saúde do religioso catalão, radicado no Brasil há mais de 50 anos.
No momento, há uma campanha de financiamento coletivo e solidário para cobrir as despesas médicas do bispo, sobretudo os gastos com o traslado entre o hospital de São Félix e a Santa Casa de Batatais, na ordem de R$ 35,9 mil segundo a Associação Nossa Senhora da Assunção (ANSA), que tem Dom Pedro como um de seus membros (dados bancários para depósito podem ser obtidos pelo e-mail prelaziasaofelix@uol.com.br)
Sacerdote e poeta, Dom Pedro inspirou e indicou caminhos para toda uma geração de religiosos comprometida com a cidadania, com a justiça social e com a democracia. No Brasil dos militares, foi contemporâneo de líderes como Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Tomás Balduíno. Sobreviveu a todos eles e segue no ringue.
O que transcrevo a seguir é uma entrevista inédita, feita com Dom Pedro Casaldáliga no dia de Natal de 1998 e jamais publicada. O entrevistado contava 70 anos vividos, 46 de sacerdócio, trinta deles no Brasil. O entrevistador, aos 19 anos, aproveitava as férias universitárias para percorrer o país com um amigo, quase irmão.
Havíamos chegado à cidade dois dias antes, de carro, após uma semana de peregrinação desde São Paulo, passando por Brasília, Goiás Velho e Barra do Garças. Estávamos hospedados ali mesmo, na casa do bispo. Uma casa muito simples, com paredes de tijolo, sem tinta ou reboco nem água aquecida. Pelas paredes, imagens que faziam referência à educação popular, à Igreja do povo, à teologia da libertação. Dom Pedro divertia-se dizendo que ali era o palácio episcopal. Errado, ele não estava. “Parece a casa da sogra”, e dava risada.
Na véspera da entrevista, tomei coragem e pedi a ele um autógrafo no encarte do álbum Missa dos Quilombos, do Milton Nascimento, um musical que ele havia escrito com outro Pedro, o também poeta Pedro Tierra, de quem eu já tinha ganhado um autógrafo. “Seja Camilo!”, Dom Pedro escreveu. “Como os outros. Na luta. Na utopia. Na doação. Lembrança do Natal de 98 no Araguaia”. Na constelação de saberes de Dom Pedro, os outros camilos eram Camilo Cienfuegos, de Cuba, e principalmente Camilo Torres, da Colômbia. Tenho tentado, bispo querido. Resistir para reexistir.
Após a missa do galo naquela noite de 24 para 25 de dezembro, tomei coragem para outro pedido: “Posso te entrevistar?”. Aluno de jornalismo indo para o terceiro ano, fiz o pedido sem saber se publicaria. A vontade íntima era de poder fazer algumas perguntas e ouvi-lo falar. Escutar histórias do Brasil profundo, episódios dos anos de chumbo, relatos de fé, coragem e esperança. “Amanhã”, ele respondeu. No meio da tarde do dia 25, Dom Pedro passou em frente ao quarto em que nos hospedamos e me flagrou sentado na cama, limpando a câmera fotográfica e fazendo anotações de viagem. Parou junto ao batente para conversar. “Vamos agora?”, perguntei. “Onde você prefere?”. Sem cerimônia, sentou-se no pé da cama como quem diz: “pode começar”.
Dom Pedro não me deixou chamá-lo de senhor. Tirei o plástico que envolvia uma fita k7 e a inseri no gravador. Seguiram-se 77 minutos de história, política e religião. Ao final, Dom Pedro pediu para encerrar: “Preciso tomar banho e me arrumar que às oito horas tem missa”. Saiu em seguida, brincando com meu parceiro de viagem: “Jornalista impertinente, hein?”
Tão impertinente que, três anos e meio depois, voltei a entrevistá-lo, em abril de 2002, desta vez para a revista IstoÉ, onde trabalhava. Peguei um voo para encontrá-lo em Goiânia e voltei no mesmo dia. O fotógrafo André Dusek partiu de Brasília para se juntar a nós, na mesma toada. Dias depois, havia um envelope na minha mesa. Dusek havia enviado por malote os cromos para a matéria e também uma foto de making of, a imagem que abre esta coluna.
Camilo Vannuchi: Vamos começar do começo, do seu começo no Brasil. Por que veio para cá?
Dom Pedro Casaldáliga: Eu sou missionário. Sempre quis ir às missões. E os superiores sempre me mandaram a outros serviços: educação, colégio, dirigir revistas. Em 1967, celebramos o capítulo geral da congregação dos claretianos, à qual pertenço. Nosso fundador foi o arcebispo de Santiago de Cuba, Santo Antonio Maria Claret. Em 1967, neste capítulo geral, depois que a Igreja celebrou o famoso Concílio Vaticano II, pediram-se voluntários para fundar uma missão no altiplano boliviano e outra no Brasil. Naqueles dias, vivíamos o martírio do Che, na Bolívia, que saiu em todos os jornais e na televisão. E pediam para vir justamente para esta região aqui, onde não havia nenhum padre ou missionário morando. O Vaticano pediu para os claretianos que viessem, porque antigos claretianos haviam missionado as áreas de Goiás onde hoje é o Distrito Federal, parte de Goiás. Conversa vai, conversa vem, eu vi que, para mim, como catalão, era mais fácil passar para o português, enquanto para os espanhóis em geral era mais fácil ir a Bolívia, onde se fala castelhano. Nosso superior geral na época, sabendo dessa minha opção, me perguntou se eu viria mesmo ao Brasil e comentou que o Brasil, como país e como Igreja, era de muito futuro e de muita responsabilidade. Em 25 de janeiro de 1968, deixando os 11 graus abaixo de zero de Madri, chegamos aos 38 graus do Rio de Janeiro.
O que você sabia sobre o Brasil?
Genericamente, a floresta brasileira, o futebol, o Nordeste. Algumas referências de literatura, como Jorge Amado, e de cinema. Pelé. Como nós temos missionários claretianos, recebíamos boletins de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Esteio, Pouso Alegre e outras cidades eram nomes conhecidos na congregação. Felizmente, quando cheguei ao Brasil já existia o Cenfi, o Centro de Formação Intercultural, para missionários estrangeiros. Era em Petrópolis (RJ), agora está em Brasília. Chegando aqui, tive a oportunidade de aprender a língua de modo mais pessoal e, sobretudo, aprender o Brasil. Tínhamos aula de português e de história do Brasil, cultura do Brasil, Igreja do Brasil. Chegamos em plena ditadura militar, 1968, ano em que seria editado o AI-5. Se eu tivesse vindo diretamente de Madri para o Mato Grosso, eu teria passado anos para descobrir o Brasil. Depois de cinco meses no Cenfi, fizemos um pequeno estágio em São Paulo para ter uma ideia sobre doenças tropicais, visitar o Instituto Butantã e aprender alguma coisa sobre as cobras, e seguimos para cá. Sete dias de caminhão. Saímos de Rio Claro, em São Paulo, num caminhão com sacos de laranja. A estrada de Barra do Garças a São Félix estava começando a se abrir. As pontes eram pinguelas. Chegamos aqui e a primeira impressão foi a distância, ou as distâncias, de todo tipo: distâncias geográficas, distâncias culturais. E uma certa solidão.
Vieram outros missionários com você?
Um colega meu que ainda não era padre veio também, o Manuel Luzón. Ele completou os estudos e se ordenou aqui. Esteve aqui até dois ou três anos atrás e agora está numa comunidade claretiana em Itapaci (GO). Então eu fui propriamente o primeiro padre a morar aqui.
Antes de vir ao Brasil você havia passado pela África e outros lugares?
Eu havia estado incidentalmente na África, por quatro meses, fundando os cursilhos da cristandade. Hoje são vistos como conservadores, mas eram muito revolucionários, porque eram os leigos que davam as palestras, e os padres escutavam. Reuniam pessoas afastadas da Igreja, incrédulos, vidas quebradas. Eram olhados pela Igreja como uma experiência um pouco… Fomos fundar na África, na região de Guiné Equatorial. Queriam que fizéssemos os cursilhos para brancos e os cursilhos para negros. E eu disse: “ou é café com leite, ou não é nada”. Tiveram que aceitar. E foi bom para mim sentir a África. A África vivia a convulsão das independências. O Congo havia se tornado independente da Bélgica (1960). Viam-se, nas ruas, mesmo em Guiné, pessoas vestindo camisetas com a figura do Lumumba (líder anticolonial do Congo). Nos cursilhos, conversamos com vários negros que já tinham a perspectiva de independência. E foi até pitoresco porque faziam o cursilho simultaneamente guardas civis, funcionários do governo espanhol e negros nativos que sonhavam com a independência. Você escutava uns e outros, sentia uns e outros. Alguns tornaram-se líderes no movimento de independência.
Quando veio ao Brasil, vocês tinham conhecimento do que era a ditadura militar que se havia instalado aqui em 1964?
Tínhamos. Mas, evidentemente, eram as informações que chegavam. Você não pode esquecer que estávamos em tempos de ditadura franquista lá. Evidentemente, os meios de comunicação oficiais davam a sua versão. Sabia-se das ditaduras militares na América Latina, mas os detalhes nós fomos conhecer aqui. Apresentava-se como comunismo e anticomunismo. Os bons e os maus. A polícia e os ladrões. Evidentemente, para a imprensa na Espanha, os ladrões eram os comunistas. O Cenfi foi muito bom porque vários professores no Rio de Janeiro nos deram palestras críticas. O diretor do Cenfi nos lia as entrelinhas dos jornais e também o que se falava na televisão. Comentava. Vimos a peça Morte e Vida Severina. Lembro que uma professora de literatura nos leu trechos de Grande Sertão: Veredas, o que nos custava a entender, porque estávamos aprendendo português. Vimos peças do Chico Buarque, ouvimos muito música brasileira. Quando viemos para cá, trouxemos discos do Geraldo Vandré. “Quanto mais eu ando, mais vejo estrada”, essas cantigas. E tivemos uma vantagem, que alguns jovens de Campinas, que tinham relação com os claretianos, vieram aqui como professores. Uma rapaziada nova, sensível, que conhecia as músicas da hora e nos ajudou a nos inculturar. Sem isso, teríamos ficado um pouco perdidos. Dois ou três espanhóis numa região com um povo muito pouco alfabetizado.
O que havia em São Félix do Araguaia em 1968?
São Félix tinha 600 habitantes. Não tinha correio, não tinha eletricidade, não tinha médico. A estrada estava se abrindo. Não tinha ônibus. Tinha dois velhos jipes.
Tinha o rio.
Era curioso porque tinha cavalos, canoas e teco-tecos (avião de pequeno porte). Era muito mais fácil pegar um teco-teco do que um carro. O (comandante) Rolim, dono da TAM, era conhecido aqui como um simples piloto. Você pegava carona num teco-teco desses.
E grandes latifúndios.
Evidentemente. Além das áreas indígenas, aqui era a marcha para o Oeste, a entrada do capital no campo. José de Souza Martins, o sociólogo, tem descrito muito bem essa entrada do capital no campo. Porque a Sudam dava os incentivos fiscais e muitos industriais do Sul e algumas empresas transnacionais “investiam” aqui, entre aspas. Aproveitavam-se dos incentivos e investiam de fato no Sul. Aqui, abriam, desmatavam, angariavam uma série de peões. A Suiá Missu, que era a maior fazenda na época, a 100 quilômetros de São Félix, chegou a ter 3 mil peões enquanto São Félix tinha 600 habitantes. Chegou a ter 1 milhão de hectares, a extensão de uma província da Espanha, e de algum Estado brasileiro também, provavelmente (o Distrito Federal tem 580 mil hectares). Já tinham chegado os primeiros posseiros, nortistas ou nordestinos. Muitos deles vindo do Maranhão, o Estado brasileiro mais depredado, mais violado. Muito lavrador vinha diretamente para cá ou passava primeiro por Goiás, sobretudo onde hoje é o Tocantins, que era uma espécie de local de passagem. Por que vinham para cá? Vinham à procura da bandeira verde. Padre Cícero tinha anunciado as grandes secas e dizia que era preciso o povo procurar a bandeira verde, passando o Araguaia. A gente entende que, para os seguidores de Padre Cícero, o Rio Araguaia seria um pouco o Mar Vermelho da Bíblia. O povo atravessava o Araguaia e procurava a bandeira verde, que eram as matas da Amazônia. Fizemos alguns levantamentos na época, com as professoras, também em busca de palavras-chaves para implementar o método (de educação popular de) Paulo Freire, e uma das expressões que eles usavam muito era “buscando uma terra de sossego”. Nas terras do Nordeste, não encontravam sossego, ou por causa da seca, ou por causa do latifúndio. No norte de Goiás também tinha latifúndio, Maranhão, essas regiões todas. Vinham também buscando terra. Aí tinham os índios. A região era formada, assim, por esses tipos antropológicos: índios, posseiros, peões, nunca os donos das fazendas, porque os donos não moravam aqui, eles eram de São Paulo. Na época, paulista era uma palavra antipática. Era quase um carrasco. Eram os donos das grandes fazendas e tinham seus gerentes, empreiteiros, capatazes. Os gaúchos, paranaenses e catarinenses vieram muito depois. O povo chama de gaúcho, mas vinham dos três Estados do Sul. Eram colonos, gente modesta, que tinha no Sul um pedaço pequeno de terra. As famílias se multiplicavam, a divisão das terras resultava em minifúndios, de 10 ou 15 hectares. Vendiam aquilo e podiam comprar 100 ou 200 hectares aqui. Depois muitos se lascavam porque a terra aqui não é igual à do Sul. E tem as pragas, as distâncias, a falta de estrutura, os problemas de escoamento.
Você comentou sobre o método Paulo Freire. Uma vez eu li que vocês usavam a palavra mata, em razão da floresta, e ela acabou causando confusão com a repressão.
Mata é uma palavra matriz. Ao mesmo tempo, são duas sílabas diretas, simples. A Polícia Federal entendeu que havia ali uma intenção subliminar. “Mata! Mata!”. A mim, fizeram um interrogatório de 16 horas, em 1972. Eram coisas tão estúpidas. Uma bandeira vermelha, que uma irmã pedia para outras irmãs para o giro do Divino Espírito Santo, para eles só podia ser a bandeira comunista. Falei para eles: “vocês, além de perversos, são estúpidos”. Era ridículo. Todo opressor é obsessivo.
Você chegou em 1968 e foi sagrado bispo em 1971?
Em 1970 foi criada a prelazia de São Félix. Prelazia são dioceses novas, que ainda precisam de muita ajuda externa. Eu sou tão bispo quanto qualquer outro bispo, mas a estrutura da diocese é frágil, está se construindo, então é chamada de prelazia. A prelazia foi criada em 1970 e eu fui sagrado bispo em 1971 porque tinha sido o primeiro padra a chegar. Como foi a cerimônia de sagração? Foi à beira do Rio Araguaia. Uma mesinha. Tínhamos uma capela minúscula, mas tivemos de derrubar porque era de barro e tinha risco de desabar. Vieram Dom Fernando (Gomes dos Santos), arcebispo de Goiânia, e Dom Tomás Balduíno, bispo de Goiás. Foi à noite, ao ar livre, com o povo. Eu havia decidido não usar mitra (chapéu) nem báculo (cajado) ou anel. Eles vieram de mitra, uma das peças para as cerimônias episcopais. Quando viram que eu não usava mitra, deixaram as mitras em cima da mesa. Uma sertaneja pegou as mitras na mesa e ficou com elas debaixo do braço durante toda a cerimônia. Ao final da cerimônia, aquelas mitras cheiravam a povo, felizmente (risadas). Já estávamos vivendo muita interdição.
Era a época da guerrilha do Araguaia?
A guerrilha não esteve propriamente aqui. Ela esteve no sul do Pará e no norte do Tocantins. Mas a repressão achava que o Araguaia tinha um metro. Tudo o que acontecia era no mesmo lugar. Até gente culta, colegas bispos, não sabiam muito bem se eu estava no Pará, no Tocantins, no Mato Grosso. Era tudo Araguaia. Havia a brutalidade da polícia, os problemas dos peões, a questão dos posseiros. Havia choques. Eu havia escrito um documento intitulado “Feudalismo e escravidão no norte do Mato Grosso”, que enviei a todas as autoridades maiores. Não se publicava isso na época. No dia em que fui sagrado bispo, havia sido enterrado um peão, sem nome e sem caixão, enterrado numa rede, e já na missa, muito emocionado e tenso, falei que minha vida não valia mais do que a vida daquele peão. Foi quase uma declaração de guerra, já na consagração de bispo. Tínhamos acabado de escrever a carta pastoral “Uma Igreja amazônica em conflito com o latifúndio e a marginalização social”, que tivemos de imprimir clandestinamente, em duas gráficas clandestinas. Foi um episódio curioso. Esses impressos chegaram aqui trazidos pela aeronáutica. Uma irmã tinha um parente na aeronáutica e pediu que trouxesse roupas das irmãs, coisas da Igreja e um baú no qual enfiaram os exemplares da carta pastoral. Uma carta pastoral sumamente subversiva, impressa numa gráfica comunista, foi trazida pela FAB em plena ditadura militar. As novelas ficam pequenas. A realidade é mais pitoresca.
Os índios tinham mais problemas ou menos do que hoje?
Mais e menos. Mais porque tinham muito menos consciência e poder de expressão. Os carajás estavam na iminência de se desmanchar. Eu conheci doze índios carajás em Luciara, hoje são cento e poucos. Eles não estavam em aldeia, estavam nas margens das cidades, embaixo das mangueiras. Os tapirapés tinham só uma terrinha e depois conquistaram a reserva de Urubu Branco, atendimento de saúde, professores nativos. No Brasil não existia o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), não havia as organizações indígenas que vieram depois. E o que a ditadura militar queria em relação aos índios era a simples e pura integração. Que índio deixasse de ser índio e passasse a ser um vulgar brasileiro, evidentemente marginalizado como a imensa maioria. Hoje estão mais organizados, há vários grupos indígenas, organizações nacionais e regionais, entidades de apoio à causa indígena. O Cimi nós fundamos em 1972. Em 1975 foi fundada a CPT (Comissão Pastoral da Terra). E você sabe que tem surgido vários contatos de indígenas do Brasil com indígenas de vários países da Ameríndia. Então, a causa é hoje mais conhecida, mais coesa e mais mundial. Por outro lado, o contato com o mundo branco é maior. São pouquíssimos os índios isolados. E o que temos é o contato com o mundo branco neoliberal, com o mercado total.
Aqui na aldeia da Ilha do Bananal, estão comemorando o Natal. As ruas da cidade estão cheias de indígenas fazendo compras. Ontem vi um indígena atravessando o rio em um barco que levava um saco com dezenas de bolas de futebol para fazer o Natal das crianças. Tem quadra de vôlei, campo de futebol.
Sim. E são bons jogadores de futebol. Quando me perguntam para que time eu torço, digo que torço para os Carajás (risos). Isso é inevitável, por um lado, e por outro lado tudo bem que haja contato. O importante é que possa se conservar a cultura, a identidade, e que em vez de uma integração se dê uma inter-integração. Que eles nos deem, que nós os demos. Que nós recebamos, que eles recebam. Não queremos os índios nem no museu nem isolados nas florestas. Todas as culturas são dinâmicas. Seria uma estupidez pensar numa cultura congelada. Agora, que esse dinamismo seja um processo consciente, livre, voluntário, e não uma imposição ou uma violência. Porque todas as políticas indigenistas no continente têm sido integracionistas, ou seja, desmanchar os povos indígenas e dilui-los nos países-Estados. Pinochet dizia “Chile não tem indígenas; todos são chilenos”. E o Chile tem mais indígenas que o Brasil. Chile tem 500 mil, nós temos 300 e poucos.
Você teve problemas com a TFP, o grupo conservador Tradição Família e Propriedade?
Contestando o latifúndio, contestávamos uma fibra muito sensível da TFP, a propriedade. Eu lembro sempre uma charge que saiu na época com um índio encarando a bandeira da TFP. “Ô, TFP, tu vais defender também meu tradição, meu família e meu propriedade?” Além do mais, eles usavam na época a bandeira do anticomunismo, o que lhes proporcionava uma cobertura oficial. Setores muito conservadores da Igreja achavam que a TFP era uma instituição providencial. Depois a CNBB foi se posicionando para mostrar que a TFP não era católica, estava fora da Igreja porque suas atitudes eram fechadas e ultra fundamentalistas. (Em 1995) Com a morte do fundador, Plínio (Corrêa de Oliveira), a TFP tem hoje muito pouca significância.
Com os movimentos sem terra, os conflitos no campo estão hoje mais graves e frequentes ou menos?
Tem uma vantagem. A atuação do MST tornou mais público o debate sobre o direito à terra e fez da reforma agrária uma certa consciência nacional. Pesquisas que se fizeram davam ao MST uma categoria de direito adquirido, respaldado por maioria. Os meios de comunicação, querendo ou não querendo, tiveram que acolher.
A própria Rede Globo fez uma novela simpática ao MST.
Sim. Uma das vezes em que viajei pela América Central, O Rei do Gado estava no auge. Na Venezuela, falava do Brasil e as pessoas lembravam do Rei do Gado. O MST não existe aqui nesta região. Por uma razão muito simples: eles são inteligentes, bem organizados, e ocupam terras em áreas mais próximas à cidade grande, onde o escoamento é mais fácil. Nesta região do Mato Grosso não há MST. Os sem terra são mais espontâneos. Há ocupações de terra não vinculadas ao MST. É um movimento revolucionário, em boa medida, mas ao mesmo tempo é muito realista. Tem conjugado a utopia, o entusiasmo, com a técnica. Tem inclusive a preocupação com uma educação de qualidade, que mereceu prêmio da Unesco, e a preocupação de se comunicar, com o Jornal dos Sem Terra, correios eletrônicos. Tem saído na opinião pública, em muitos meios de comunicação. João Pedro Stédile, José Rainha. É curioso. Querendo ou não querendo, é feita certa ligação entre MST e os zapatistas. São movimentos camponeses, indígenas ou não, que sabem agir com uma atitude e uma agressividade moderna. Com presença pública nos meios de comunicação e uma preocupação, uma solidariedade maior. Não querem só terra. Querem democracia, saúde, educação. Não são um partido, mas são muito políticos, evidentemente.
Você foi chamado de “padre comunista” por muito tempo. O que você acha do comunismo?
Uma coisa é o comunismo e outra coisa são os comunismos, os que de fato se deram na história. Por fundamentalismo, por burocracia ou porque o mundo estava dividido em dois, tornaram-se ditaduras. O comunismo ou socialismo utópico continua sendo válido no sentido de uma fraternidade universal, os meios de produção nas mãos do povo, uma democracia que fosse realmente democrática, econômica, social, política e cultural. Hoje, a democracia que está espalhada mundo afora é uma democracia apenas formal. Fico irritadíssimo de ver que o Clinton tem o maior respaldo na história dos presidentes dos Estados Unidos, quando, no meu entender, é um homem que mereceria uma cassação, um impeachment. por lesa humanidade. Seus bloqueios, suas ações, suas bombas, a democracia gringa que o respaldo canoniza.
Para os comunistas, a Igreja é o ópio do povo?
Há religiões, como as políticas têm sido com frequência e também o capital, que são o ópio do povo. Contribuíram desde a colonização para que se chegasse a certo conformismo, certa passividade, “deus quer”. A partir de Constantino, a Igreja virou cristandade, com muita vinculação com o poder. Agora, se alguma coisa há clara na vida de Jesus é sua opção pelos pobres, já a partir de seu nascimento entre pobres e marginalizados. Felizmente, nos últimos anos, em toda a América Latina, a teologia da libertação, as comunidades eclesiais de base, as pastorais sociais, têm corrigido e em boa parte têm sido uma das forças mais dinamizadoras. Tem muita igreja. Cabem o Padre Marcelo (Rossi) e o Frei Betto.
Bispo de São Félix, você recebe na mesma missa tanto os empregados quanto os patrões. É tranquilo conciliar, escolher a mensagem?
A gente faz questão de dizer o que é preciso dizer, de estimular a consciência de uns e de outros. Os patrões praticamente nem participam da missa. Hoje, na região de São Félix, além dos posseiros, há os pequenos proprietários, os pequenos comerciantes, os funcionários, que são uma espécie de subclasse média, muitos deles. Muitos gaúchos, que não têm nada de rico, quando viam a gente falar em igreja dos pobres, estranhavam, ficavam pouco à vontade. Você é rico? O que você tem? Tem 100 hectares de terra, mas veio para cá do Rio Grande do Sul porque já quase não sobrevivia. Então você é pobre. Um pouco essa mentalidade. Depauperado. O povo, a imensa maioria. Somos a favor da imensa maioria. Ao contrário do neoliberalismo, que é a favor da mínima minoria. É essa a diferença. Os grandões continuam não morando aqui.
Poesia e Igreja andam juntas?
A Bíblia é sumamente poética. Isaías é um dos maiores poetas da história. Deus é o grande poeta. Você sabe que poeta significa “fazedor, aquele que faz”. E na história da Igreja há grandes figuras que foram poetas. Muitos santos. São João de la Cruz, por exemplo. Na Catalunha, há padres e religiosos reconhecidos até pela (contribuição na) restauração do catalão. Poetas, escritores. E eu sou também mais ou menos poeta.
Mais ou menos?
Sabe por que eu digo mais ou menos? Porque eu acho que tinha vocação de poeta, e poderia até ter sido um bom poeta, mas não tenho me dedicado à poesia. Tenho soltado poesia, mas não me dedicado à poesia. Se eu me dedicasse à poesia e à literatura, prejudicaria minha atividade pastoral. Leio poesia, evidentemente, gosto, faço, mas não sou uma pessoa dedicada à poesia. Além do mais, o fato de escrever em três línguas dilui. Quem escreve em três línguas não escreve bem em nenhuma delas. Pode escrever corretamente nas três, mas perde detalhes, matizes. Eu jamais poderia escrever uma novela, que exige muito palavreado do dia a dia. Minha poesia poderia ser muito mais rica em palavras.
Daqui a quatro anos, haverá sua aposentadoria compulsória. O que você vai fazer em seguida? Vai se dedicar integralmente à poesia?
Não tenho pensado nisso. Quero continuar bem perto do povo. É o que eu posso dizer. Não quero sair do Brasil. Se sair do Brasil, não quero sair da América Latina. E se sair da América Latina, eu iria para a África. Você nunca voltou para à Catalunha nem pretende voltar? Sou um pouco radical. Quando decidi ir às missões, ainda jovem religioso, sempre fiz essa opção. Vou e não volto. “Queime os navios!”, dizia o colonizador para que os conquistadores não pudessem voltar à Espanha. Agora tem que ficar na América. Eu também queimei os navios, nesse sentido. Para não voltar. Eu estou muito mais livre aqui, do outro lado do mar.
Uma vez li uma entrevista sua em que você comentava que os jornalistas lhe perguntavam sobre todas as coisas, mas nunca sobre sua fé ou se você acredita em Deus. Você acredita em Deus?
Evidentemente que sim (risos). Mas essa pergunta é interessante também por outros motivos. Você poderia perguntar: “em que Deus?” Porque também tem muito Deus por aí. Em certa medida, cada um tem seu Deus. E isso pode ser legítimo. Eu entendo Deus e acredito em Deus pelo que sou, pelo que tenho vivido. É uma fé pessoal, uma fé condicionada pela minha pessoa. Agora, para que se trate do verdadeiro Deus no qual eu quero acreditar, tem que ser um Deus misericordioso, um Deus da vida, um Deus de todas as culturas, de todos os povos. Um Deus que não julga, salva. Um Deus que é amor. A expressão mais alta da Bíblia é a expressão de São João: “Deus é amor”
Quando e como você descobriu sua vocação religiosa?
Eu sou de uma família católica. Meu pai foi seminarista por dois anos, depois saiu, casou e teve quatro filhos. Meu tio, irmão da minha mãe, era padre, Padre Luís. A revolução espanhola, a revolução vermelha, matou meu tio por ser da Igreja, conservador. Lá, nos perseguiam os comunistas. Aqui, nos perseguem por comunistas. Foi surgindo a vocação e as missões, o ideal de solidariedade, uma radicalidade. No Mato Grosso, encontrei meu espaço.
Como nasce uma figura como Marcelo Rossi?
O povo é multitudinário por definição. Por outro lado, o povo, e sobretudo o povo pobre, desnorteado, amargurado, tenso, é um povo que busca consolação, cura, alívio. Marcelo Rossi nasce em plena época da mídia. Padre Cícero, por exemplo, empolgava as multidões consolando as multidões, estimulando nas multidões a confiança em Deus. Imagina um Padre Cícero com os meios de comunicação de hoje. Marcelo Rossi surgiu num momento em que a efervescência religiosa está no auge. Depois da famosa morte de Deus, parece que Deus está de volta. Então ele é filho de uma época, dentro desse clima carismático, tanto no mundo católico quanto no mundo protestante. O Brasil é, também, um país tipicamente de efervescências. Em tudo. As grandes massas, que por outro lado talvez reivindiquem o que a Igreja não deu. É certo que nossas missas eram excessivamente românicas, frias. Faltava calor. Agora, no meu entender, o Padre Marcelo Rossi já passa. Ele transformou a celebração em um show. Você pode fazer uma missa com a participação do povo, que tenha canto, uma parte litúrgica. Mas Padre Marcelo é muito personalista. Em vez de anunciar Jesus, ele anuncia o próprio Marcelo Rossi. E Jesus foi um menino sem-terra. Ele disse que seremos julgados pelo que fazemos pelo próximo. Se o pessoal que assiste às missas do Marcelo Rossi, nas igrejas ou na televisão, saísse com vontade de transformar o mundo, resolver problemas de terra, de menino de rua, de sem-teto, ótimo. Mas não vejo desse jeito. Penso que a elegância é sempre bastante sóbria. E no culto religioso deve haver certa sobriedade, dentro da alegria e da participação. Nas comunidades eclesiais de base e nas romarias, há sempre movimentação, participação, até encenação, que cabe. Mas sobretudo vinculando a fé com a vida e a celebração com a luta.
Em São Paulo, Dom Paulo Evaristo, Cardeal Arns, deixou a arquidiocese e foi substituído pelo Dom Cláudio Hummes. A igreja retrocedeu?
Tem que perguntar o que entendemos por Igreja. É evidente que o atual arcebispo de São Paulo não é tão comprometido com a causa popular, com a América Latina, com os direitos humanos e com o ecumenismo quanto Dom Paulo Evaristo Arns. Mas a Igreja de São Paulo é também as comunidades de São Paulo, as pastorais de São Paulo. E têm certa liberdade. Dom Cláudio Hummes é evidentemente mais conservador, está mais vinculado a movimentos que chamamos de neoconservadores. Mas existe uma atuação importante de movimentos populares aos quais setores importantes da Igreja estão vinculados. Ainda temos as comunidades eclesiais de base. Temos o Grito dos Excluídos, estamos nos preparando para uma grande campanha contra a dívida externa, os leigos estão participando, os bispos têm, graças a Deus, menos protagonismo. Quem falava em cidadania anos atrás? Ninguém. Hoje falamos em cidadania. Também na Igreja, apesar dos pesares, há muito mais democracia hoje do que trinta anos atrás. Há pouco tempo uma pessoa do povo da comunidade não subiria ao altar para fazer uma leitura e, se subisse, ficaria muda diante do padre.
Você vive há 30 anos em São Félix do Araguaia. Os acessos são em estrada de terra, às vezes intransitáveis na época de chuvas, mas agora está conectado via internet com o mundo todo. Essa globalização tecnológica assusta?
Não. Ela está aí. O perigo seria se nos virtualizássemos tanto que deixássemos de ser reais. Tenho brincado em palestras com religiosos que, antes, os religiosos tinham de ser virtuosos. Agora basta que sejam virtuais. A comunicação virtual pode trazer este risco, de perder um pouco o contato real. O dom de Deus é a outra mundialização. Essa mundialização do mercado, do lucro, do capital, e esta outra mundialização da comunicação, da solidariedade, a bendita mundialização. Em última instância, a humanidade é uma só.
Infelizmente, ainda permanecem os conflitos, o ódio. Os jovens que tocaram fogo no índio Galdino, em Brasília (1997), por certo navegam na internet.
Somos todos filhos do mesmo Pai. A Bíblia nos apresenta a parábola de Caim e Abel para nos dizer que, infelizmente, dentro de uma só família humana, há e haverá um irmão que mata outro irmão. Depois de mostrar a rebeldia contra Deus, o orgulho, vem a parábola da briga entre irmãos. São os principais pecados, a presunção e o ódio. Ódio que é cobiça, prepotência, explosão. O desamor.
Você chegou ao Brasil numa época em que começava a haver muitos presos políticos. Você nunca foi preso?
Só em prisão domiciliar. Na época em que prenderam todos os agentes de pastoral, ficamos vários dias em casa, sem poder sair. Quando chegou domingo, disse que precisava ir fazer a missa. “Ou vai ser o capitão que vai querer celebrar a missa?”, provoquei. Então saíram quatro policiais nos escoltando para ir fazer a missa. Quando chegou a hora de dar a paz, íamos até os soldados. Os pobres ficavam com fuzil, metralhadora, e não sabiam muito bem o que fazer. Numa dessas missas, uma senhora entregou o livro de cantos a um soldado (risos). Saindo, um dos soldados encostou numa cerca chorando. “Dom Pedro, sou católico também, eu não queria… Os superiores mandam na gente”