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Redes sociais criaram redomas de pensamento único. Democracia é devastada por poderes globais. Há saídas, mas vivemos a “hora mórbida”

Zigmunt Bauman, entrevistado por Alessandro Gilioli, no L’espresso | Tradução: Antonio Martins

Zygmunt Bauman, o grande sociólogo teórico da “sociedade líquida” tem dedicado parte de suas reflexões recentes à internet – em particular, às redes sociais, acusadas de criar redes afetivas na verdade inexistentes. Nesta entrevista, feita durante o Fórum do Futuro, organizado pela Câmera de Comércio da cidade de Udine, na Itália, ele parte deste tema – porém, estende-se para a atualidade política, os chamados “partidos anti-sistema” (de esquerda e de direita) e as eleições primárias norte-americanas.

Professor Bauman, a sua crítica à internet é existencialista?

A internet torna possíveis coisas que antes eram impossíveis. Potencialmente, dá a todos acesso cômodo a uma quantidade indeterminada de informações: hoje, temos o mundo na ponta de um dedo. Além disso, a rede permite a qualquer um publicar seu pensamento sem pedir permissão a ninguém: cada um é editor de si mesmo, algo impensável há poucos anos.

Mas tudo isso – facilidade, rapidez, desintermedição – traz também problemas consigo. Por exemplo, quando você sai de casa e se encontra na rua, num bar ou num ônibus, interage – queira ou não – com as pessoas mais diversas, as que lhe agradam e as que lhe desagradam, as que pensam como você e as que pensam de modo distinto. Não pode evitar o contato e a contaminação, está exposto à necessidade de confrontar a complexidade do mundo. Esta própria complexidade não é uma experiência prazerosa e obriga a um esforço.

A internet é o contrário: permite não ver e não encontrar todos os que são diversos de você. Eis porque a rede é, ao mesmo tempo, um remédio contra a solidão – você se sente em contato com o mundo – e um lugar de “confortável solidão”, onde cada um está fechado na suanetwork, da qual pode excluir quem é diverso e eliminar tudo o que seja menos prazeroso.

Há, contudo, movimentos políticos que nasceram na rede e se difundiram graças a ela. As primaveras árabes, por exemplo, mas também o Podemos, na Espanha e o Movimento 5 Estrelas na Itália…

É uma questão rica de ambivalências. Em geral, porém, as pesquisas sociais mostram que a maior parte das pessoas usa a internet não para abrir a própria visão mas para fechar-se dentro de cercados, para construir “zonas de conforto”. Um pouco como condomínios distantes do centro das cidades, circundados por muros, guardas armados e câmeras em circuito fechado, onde as pessoas vivem num tipo de mundo imaginário, sem controvérsias, sem conflitos, sem se expor às diferenças.

É claro que, graças à rede, pode-se hoje convencer as pessoas a ir às ruas manifestar-se contra qualquer coisa ou qualquer um, mas a incidência sobre o real destas mobilizações nascidas nas “zonas de conforto” é outro assunto. Você acaba de citar as primaveras árabes. Não me parece que tenham conduzido a um verão.

Portanto, segundo o senhor, não há uma relação entre a difusão da internet e os protestos anti-sistema?

Sim, há, mas a internet não é a causa, é só um veículo. As causas dos partidos anti-sistema relacionam-se, na verdade, com a crise de confiança na democracia. E esta crise, por sua vez, deriva do fato de uma contradição. Vivermos num planeta globalizado e com enorme interdependência – mas os instrumentos de que dispomos para gerir esta nova condição são os mesmos que herdamos de nossos avós e do Estado nacional. Naquele tempo, uma decisão tomada numa capital realizava-se no território daquele país e não valia cinco centímetros adiante.

Agora, ao contrário, a interdependência é mundial e os Estados nacionais são incapazes de geri-la. Por isso, hoje os governos estão sob dupla pressão. De um lado, devem responder aos eleitores, que reivindicam dos políticos realizar o que prometeram; de outro, a realidade global interdependentes – os mercados as bolsas, a finança e outros poderes jamais eleitos por ninguém – impedem que estas promessas sejam mantidas. A crise de confiança nasce desta dupla pressão. Sentimos todos que agora as democracias não mais funcionam, mas não sabemos como ajustá-las ou com o quê substituí-las.

É disso que nascem os movimentos anti-sistema?

Diria, melhor, que é disso que nascem os sentimentos anti-sistema. Cuidado ao falar de movimentos. São um conceito sociológico, enquanto o sentimento é um conceito psicológico.

E estes sentimentos não se traduzem em movimentos?

As pessoas compartilham reações emotivas nas redes sociais e às vezes organizam-se, a partir dali, para ir às ruas e protestar. Gritam todas os mesmos slogans, mas na verdade têm interesses diversos e expectativas difusas. Depois, voltam para casa contentes pela fraternidade com os demais que se criou, mas é uma solidariedade falsa. Chamo-a de “solidariedade carnaval”, porque me lembra aqueles eventos nos quais, por quatro ou cinco dias, coloca-se a máscara, canta-se e dança-se junto, fugindo por um tempo limitado da ordem das coisas. Estes protestos permitem a explosão coletiva de problemas diversos, e de demandas individuais, por um lapso breve de tempo, como no carnaval – mas a raiva não se transforma em mudança compartilhada.

Alguns partidos, que ao menos canalizam estes sentimentos, são muito distintos entre si. Que pensa a respeito?

Também estes partidos encontram-se diante da crise da democracia da qual falávamos. E a esta crise respondem tanto os que buscam reforçar a democracia quanto os que propõem, em vez disso, um “homem forte”, ou qualquer forma de fundamentalismo político-religioso. De resto, se as democracias não são capazes de realizar as expectativas, não surpreende que se busque alguém a quem atribuir uma função salvadora, o homem “de pulso” que parece capaz de realizar o que as democracias não sabem cumprir.

Um exemplo recente é Donald Trump: hoje, muitos eleitores norte-americanos seduzem-se por quem ataca as instituições democráticas e zomba de sua representação. Além disso, o bilionário Trump representa uma transferência de consensos, da liderança à gerência. A liderança é a capacidade de fazer as coisas certas, “to do right things”, enquanto a gerência é simplesmente a capacidade de fazer as coisas bem, “to do things right”. É uma grande diferença.

Esta ruptura de confiança na democracia explica também a característica “populista” que tem sido atribuída aos movimentos anti-sistema? O senhor está de acordo com esta definição?

“Populistas”, na política, são sempre os outros, os adversários. Na verdade, qualquer bom partido deveria ser “populista” – ou seja, escutar o que pensam e o que pedem as pessoas comuns, os cidadãos. No entanto, no debate político a palavra é usada em sentido pejorativo. Não me preocupa a suposta ameaça do “populismo”, mas a possível resposta autoritária à crise da democracia.

Mas por que em alguns países, como na França, o protesto anti-sistema derivou à direita e em outros, como a Espanha, à esquerda?

Porque estamos num interregno, para citar Gramsci. Ele dizia que “se o velho morre e o novo não nasce, neste interregno ocorrem os fenômenos mórbidos mais diversos”. Hoje, os velhos instrumentos não funcionam mais; mas os novos ainda não existem. Direita e esquerda eram conceitos plenos de significado há poucas décadas, mas são muito menos na complexidade policêntrica do presente.

Em que consiste esta complexidade policêntrica?

Depois da queda do Muro de Berlim, alguns pensadores levantaram a hipótese do fim da História, do fim dos conflitos políticos, no interior de um sistema liberal-capitalista pacífico e definitivo. Erraram. O planeta é muito mais dividido e conflituoso que antes, cheio de choques locais mais difíceis de compreender, se comparados com os que ocorriam entre os dois blocos. Pense no que ocorre na Ásia Central, onde árabes muçulmanos matam outros árabes muçulmanos. Este policentrismo complexo está também na política, onde entrelaçam-se instâncias desconectadas entre si e difíceis de classificar com “de direita” ou “de esquerda”. Antes, o confronto era entre conservadores e progressistas, entre quem queria uma sociedade baseada no lucro e quem a queria assentada na cooperação. Hoje, os conflitos são até maiores, mas menos simples e menos puros.

E os sinais aparentes de “volta da esquerda”, como Jermy Corbyn, na Inglaterra, e Bernie Sanders, nos Estados Unidos. São apenas miragens?

Sanders representa um fenômeno novo e interessante, mas há países em que a esquerda não existe mais, como no leste europeu. Em geral, o problema contemporâneo da esquerda é sua constituição, seu bloco eleitoral. Em certa época, foi a classe dos trabalhadores, que a esquerda defendia. Mas hoje, quando as capitais movem-se velozmente de um país a outro, também os instrumentos com os quais se protegiam os interesses das classes populares estão entre o que não funciona mais – a começar das greves. Se os trabalhadores cruzam os braços, um segundo depois o capitalista transfere a produção para um país onde encontra pessoas contentes por ganharem um par de dólares por dia.

Neste contexto, muitos políticos herdeiros da esquerda apavoram-se com a ideia de irritar as bolsas, os mercados, a finança – em suma, os poderes que podem colocar um país de pernas para o ar em um dia. Por isso, mudam de tema. Por exemplo, autodefinem-se de esquerda os políticos favoráveis ao casamento homossexual. Bonito, justo, de acordo, mas o que tem a ver com o significado de esquerda? O que tem a ver com a justiça social, que era a razão de ser da esquerda.

Mas, sim, há outros, como Sanders, que querem representar o protesto contra as leis globais dos mercados e candidatam-se para desafiá-las. Tenho muito respeito por eles, mas não gostaria que criassem muitas expectativas sobre o que se pode verdadeiramente fazer com os instrumentos já não funcionais próprios da era do interregno. De outro modo, o risco é desiludir-se rápido, como ocorreu com Tsipras na Grécia.